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terça-feira, 1 de junho de 2010

A primeira sociedade alternativa?

Por Reinaldo Sampaio Pereira (Revista Griffe),

Busto de Platão

Em um dos seus textos menos (mas muito) conhecidos, a carta sete, Platão revela seus anseios, na juventude, de entrar para a política, assim que fosse possível, e revela também profundo descontentamento e decepção com o julgamento que Sócrates teve, tendo sido condenado pela cidade e conduzido à morte por envenenamento, bebendo cicuta. Também na carta sete, o filósofo narra sua viagem a Siracusa. Platão para lá foi com o intento de fundar a cidade idealizada em um dos seus mais famosos textos, a República.

Sendo um autor que dispensa apresentações, com uma vasta obra que se estende por vários domínios da Filosofia, como a Metafísica, a Ética e a Teoria do Conhecimento, Platão também se notabilizou pelas suas investigações acerca da Política, tendo sido crítico de alguns regimes políticos gregos, como o dos trinta, que quase levou Sócrates à morte, alguns anos antes da sua condenação. Em alguns dos seus diálogos, como as Leis, o Político e a República, o filósofo dedica-se à análise da política.

Na República (diálogo de grande fôlego, no qual Sócrates debate com vários interlocutores, a começar pelo anfitrião Céfalo – na casa do qual se passa o diálogo –, seu filho Polemarco, Trasímaco, Glauco e Adimanto, irmãos de Platão), Sócrates, personagem principal do diálogo (lembremos que Platão escreveu dezenas de diálogos, em vários dos quais Sócrates afigura como personagem principal, debatendo com seus interlocutores sobre diversos temas, como sobre a justiça, a virtude, o bem, etc), como é próprio ao seu modelo investigativo, questiona, primeiramente, em que consiste a justiça, para então tentar apreendê-la. Sugere, para isso, examinar o que seria o homem justo e, antes, o que seria a cidade justa, investigação essa que culmina no exame de como seria possível elaborar teoricamente uma cidade justa, uma cidade ideal.

Notemos que a cidade teórica elaborada contém elementos próprios a algumas póleis, a algumas cidades gregas, a partir de elementos teóricos apresentados em vários dos seus diálogos. Como é observado pelos helenistas, a cidade ideal da República contém mais elementos da bélica Esparta que da Atenas que se notabilizou, dentre outras coisas, pela implementação de um regime totalmente novo na época, a democracia (não uma democracia representativa, como nos moldes de hoje, mas uma democracia participativa, na qual todo aquele que era considerado cidadão, ainda que fosse uma minoria entre os habitantes de Atenas, podia participar diretamente dos destinos da pólis).

Essa cidade ideal teorizada, que mescla elementos teóricos com outros extraídos de cidades conhecidas por Platão, teve notável sorte no domínio da investigação política. Nesse sentido, Aristóteles, por exemplo, alguns anos depois, encontra na República uma grande fonte de debate para o seu livro Política. Na História da Filosofia, de modo geral, sobretudo quando se discute acerca da Filosofia Política ou então da Teoria do conhecimento, é notável como a República parece receber, muitas vezes, acentuada atenção. Do ponto de vista teórico, a cidade ideal de Platão, de várias perspectivas, continua a ser esquadrinhada pela História da Filosofia, oferecendo inúmeros elementos para a teorização política. No entanto, do ponto de vista da tentativa da sua implementação, a sorte que teve a cidade idealizada foi bastante diferente.

Na confecção teórica da cidade idealizada há uma mescla de elementos teóricos da Política e da Teoria do Conhecimento. Atentando para essa relação, lembremos primeiramente do livro VII da República, no qual Sócrates apresenta a famosa alegoria da caverna (que serviu de base comparativa para discussões sobre o filme Matrix). Depois de apresentar a conhecida imagem dos prisioneiros presos no fundo da caverna e depois de sugerir a condução de um dos prisioneiros para o seu exterior, para contemplar o que, na alegoria, seria a verdadeira realidade (em oposição à realidade falsa, imitativa, do interior da caverna), Sócrates propõe que o prisioneiro que conheceu a verdadeira realidade retorne ao seu interior, para apresentar aos ex-companheiros de grilhões do interior da caverna a verdadeira realidade.

De uma certa perspectiva de análise, de um viés político, essa volta à caverna para tentar falar para os ex-companheiros de grilhões sobre a verdadeira realidade é concorde com a proposta de Sócrates segundo a qual a educação de alguns deve ser direcionada para que venham a conhecer o que é a justiça, a virtude, o bem, etc, e, de posse desse conhecimento, não apenas usufruir para si dos seus prazeres, mas devendo (retornar à caverna) conduzir a cidade para que ela, enfim, possa ser justa, para que todos os seus habitantes possam usufruir da justiça. Sócrates, então, nos apresenta a figura do rei filósofo, aquele que conhece o que é o bem para, então, governando a cidade, poder conduzi-la à justiça. Notemos que, em certa medida, o conhecimento estaria a serviço da prática. O rei filósofo precisaria conhecer o que é a justiça, o bem, para poder governar justamente a cidade. Tal conhecimento atenderia à finalidade de criar a possibilidade de implementação de uma cidade ideal, justa.

É dessa perspectiva que queremos lembrar das viagens de Platão a Siracusa. Platão teria feito três viagens para aquela pólis. As duas primeiras e uma certa mescla de acontecimentos tanto em Atenas quanto em Siracusa teriam criado situação favorável para que, naquele momento oportuno (kairos, como o grego denominava o momento oportuno), Platão viajasse novamente a esta pólis para tentar implementar a cidade idealizada teorizada na República.

Dentre os acontecimentos em Atenas mencionados, chamemos a atenção, primeiro, para a guerra do Peloponeso. Após anos de uma guerra que se iniciara em 431 a.C., entre o bloco comandado por Atenas e a liga liderada por Esparta, e após também a peste que dizimou parte da população ateniense, Atenas conseguiu negociar uma conveniente paz com os espartanos, que durou por seis anos, até Alcibíades convencer membros da assembléia ateniense e Atenas entrar em guerra contra Siracusa, cidade aliada de Esparta. Esse episódio culminou na derrota de Atenas, em 404 a.C., após a qual foi instaurado, em Atenas, o curto e injusto governo dos trinta (período esse identificável no filme Sócrates, dirigido por Roberto Rossellini).

Com o governo dos trinta, Platão testemunhou diversas arbitrariedades políticas e transgressões das leis, situação essa que não foi plenamente modificada com a queda do referido injusto governo. Na Atenas pós-governo dos trinta, as leis estavam corrompidas, a injustiça se dissipou na cidade a ponto de condenar Sócrates à morte (após as acusações de corromper a juventude e de ser ímpio aos deuses, em uma Grécia politeísta). Desiludido com o que Atenas está se transformando com o fim do século de Péricles (o qual conheceu glória militar, grande florescimento cultural, a filosofia de Sócrates), Platão parte para Siracusa, quando então conhece Dion (sobrinho de Dionísio I), que será o responsável por outras viagens de Platão àquela pólis.

O conhecimento da filosofia política de Platão, das suas ideias acerca da elaboração de uma cidade justa, teria estimulado Dion a convidar Platão a ir novamente a Siracusa, tendo Dionísio I falecido e ele, o próprio Dion, assumido o governo. Platão então viaja para Siracusa novamente a fim de, com a aprovação de Dion, tentar implementar um modelo de cidade mais justa. Mas diversos episódios que se sucedem não são favoráveis a Platão. Dion perde o governo para Dionísio II (filho de Dionísio I), Platão passa por alguns momentos difíceis em Siracusa e decide retornar a Atenas.
Em 361 a.C., Platão viaja pela terceira vez a Siracusa, sob o governo de Dionísio II, para tentar implementar a cidade idealizada na República. Platão não consegue instaurar a cidade ideal e retorna a Atenas. A tentativa de deixar um rei filósofo para a criação da cidade ideal em Siracusa falha, assim como não obtém sucesso a tentativa do prisioneiro da caverna ao retornar a ela para falar para os ex-companheiros sobre a verdadeira realidade. Os prisioneiros encontram-se cegos pela penumbra da caverna e com o hábito solidificado (em função do aprisionamento por correntes) de olhar apenas as sombras projetadas no fundo da caverna. Isso os impede de aceitar a realidade fantástica de um mundo luminoso e exterior à caverna. De modo semelhante, guardadas as devidas diferenças entre ambos os domínios investigativos, Siracusa está com as suas leis, com os seus costumes, com a sua organização política bem solidificadas e com os seus habitantes cegos para enxergarem um novo modelo político ideal teorizado por Platão. A terceira viagem a Siracusa, que, se tivesse tido outra sorte poderia ter coroado certa teorização política proposta na República, ganhou o relato não de uma viagem de êxito, e as consequências para a teorização política de um possível êxito da terceira viagem a Siracusa ficaram no domínio da ficção.

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